Violência contra a mulher no Brasil ainda acaba em cesta básica

Matéria de Juliana Andrade
Repórter Agência Brasil

A cada 15 segundos, uma mulher é agredida ou espancada no Brasil. Estima-se que, por ano, 2,1 milhões de brasileiras sejam vítimas de violência, praticada em 70% dos casos pelo próprio marido ou companheiro, dentro de casa. Os dados, da pesquisa “A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado”, realizada em 2001 pela Fundação Perseu Abramo com 2,5 mil entrevistadas, trazem à tona situações muitas vezes encobertas pelo manto do silêncio, do medo e pela impunidade dos agressores. “Há um complô do silêncio em volta dessa forma de violência, que não encontra limites de idade nem de classe econômica. Por ser praticada dentro de casa, ela não é visível e é difícil combatê-la”, observa a advogada especialista em direitos humanos e gênero Letícia Massula, uma das representantes no Brasil do Comitê Latino-Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil).

De acordo com o Cladem-Brasil, além das conseqüências físicas e psicológicas que acarreta à mulher, a violência de gênero traz custos ao país da ordem de 10,5% do Produto Interno Bruto, distribuídos entre gastos diretos e indiretos. Com o objetivo de trazer ao debate a gravidade do problema da violência contra a mulher, será realizada a partir de amanhã (25) a campanha “Dezesseis dias de Ativismo contra a Violência de Gênero”. A iniciativa é fruto de parceria entre o Cladem, a organização não-governamental Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento (Agende) e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para (Unifem). No Brasil, a iniciativa conta com apoio de três órgãos do governo federal, as Secretarias Especiais de Políticas para as Mulheres, Direitos Humanos e Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

A mobilização ocorrerá simultaneamente em 127 países, de modo a estabelecer um elo simbólico entre violência contra a mulher e violação dos direitos humanos. As datas de 25 de novembro e 10 de dezembro foram escolhidas para marcar o lançamento e o encerramento da campanha por representarem o Dia Internacional contra a Violência de Gênero e o Dia Internacional dos Direitos Humanos, respectivamente.

No Brasil, a campanha foi apresentada na Câmara dos Deputados, durante o seminário “As Recomendações do Comitê Cedaw e o Estado Brasileiro”, no dia 18 deste mês. Na ocasião, foram discutidos tratados internacionais voltados à proteção dos direitos fundamentais, com ênfase na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), adotada pela Organização das Nações unidas em 1979.

Nesta terça-feira, uma sessão solene em comemoração ao Dia Internacional contra a Violência de Gênero, às 10 horas, no Congresso Nacional marca o início da campanha.

Cesta básica

Para as entidades envolvidas na mobilização, o lançamento da campanha no Congresso tem um caráter simbólico importante no enfrentamento da violência contra a mulher. Na avaliação de especialistas, um dos maiores entraves é a falta de legislação específica sobre a violência doméstica para responsabilizar criminalmente os agressores.

Segundo a advogada Letícia Massula, muitos casos acabam sendo rotulados como lesão corporal leve, para os quais a condenação máxima não excede a um ano. A lei prevê a possibilidade de aplicação de penas alternativas nesses casos. “A pena que tem sido usada geralmente é o pagamento de cestas básicas. Embora não haja nenhum artigo da legislação que diga que tenha que ser assim, o costume desde o início da aplicação dessa lei passou a ser uma cesta básica”, critica a advogada.

No entendimento da representante do Cladem no Brasil, as penalidades deveriam ser mais duras, em se tratando de violência doméstica contra mulheres. “É muito diferente eu me envolver numa briga e tomar um soco de um estranho na rua, é uma lesão corporal leve. Mas, tomar um soco do meu marido, do meu companheiro, da pessoa com quem depois eu vou dormir na mesma cama, é muito diferente”, avalia a advogada. Ela alerta para os riscos de reincidência, o que pode resultar até mesmo na morte da vítima. “O potencial ofensivo da violência doméstica é muito maior, porque é muito mais fácil que a mulher venha a sofrer mais violência por parte do marido que de um estranho”.

Outro problema, de acordo com a especialista, diz respeito aos critérios usados para a definição do grau de lesão corporal. Para isso, explica a advogada, são levados em conta fatores como o tempo em que a vítima se afasta das ocupações habituais. Segundo ela, caso esse período seja superior a trinta dias, o crime é considerado lesão corporal grave. “Se a mulher tiver que ficar mais de trinta dias afastada do trabalho porque quebrou o dedo numa briga e teve que engessar a mão, seria lesão corporal grave. Se ela for espancada, surrada, ficar cheia de hematomas e tiver que passar uma semana no hospital, e depois de dez dias puder voltar ao trabalho, isso vai ser enquadrado como lesão corporal leve”, exemplificou a advogada.

Letícia Massula alerta para o fato de que algumas formas de violência acabam banalizadas, até mesmo entre as próprias mulheres. Segundo a advogada, a definição do termo “violência de gênero” é oriunda da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulheres, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1995 e ratificada pelo Brasil no ano seguinte. O documento estabelece que é violência contra a mulher “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.

O problema acontece em casos de ameaças, insultos, humilhações e ironias. “Boa parte da população não entende as agressões psicológicas como violência e, por isso mesmo, essa situação acaba encoberta, fica invisível e, dessa forma, quem a pratica não é punido”.

No entendimento da especialista, embora as mulheres estejam mais encorajadas a denunciar o agressor, a insegurança muitas vezes ainda impera e faz com que as vítimas permaneçam em silêncio. “Não é fácil denunciar o pai de seus filhos, assumir um grande fracasso na relação. A mulher que está passando por esse problema tem muita dificuldade de entender que a única forma de ela não sofrer uma violência pior e manter a sua dignidade é a denúncia”, observa.

Para a advogada, os serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência são fundamentais para encorajá-las a denunciar o companheiro. “Cabe a nós, profissionais capacitados, dar todo apoio, acolher essa vítima para que ela denuncie com segurança”.

Morosidade

A diretora-executiva da Agende, Marlene Libardoni, destaca que o Brasil ratificou todos os instrumentos de proteção aos direitos humanos. Ela ressalva, porém, que, no plano interno, a morosidade da Justiça e a falta de capacitação dos operadores do direito são fatores que dificultam o combate à violência contra a mulher. No entendimento de Marlene, o Estado deve investir mais recursos na implementação do modelo conhecido como casa-abrigo, em que vítimas que denunciaram agressores recebem assistência, e em Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.

De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 7,3% dos 5.560 municípios brasileiros possuem essas delegacias. “É um número mínimo para um país da dimensão do nosso. Mas, além de aumentar o número, é preciso dar melhores condições de funcionamento e de atendimento às mulheres”, cobrou.

Em agosto, durante o lançamento do “Programa Nacional de Combate à Violência Contra a Mulher”, o governo federal anunciou o investimento de R$ 1 milhão para capacitar servidores de delegacias especializadas no atendimento à mulher nos estados do Paraná, Tocantins, Minas Gerais e Espírito Santo.

A ministra Emília Fernandes, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, ressalta que um dos focos do programa é a prevenção, com ênfase na educação infantil no ambiente familiar e na escola. De acordo com a ministra, outro objetivo é montar uma rede de cidadania, a partir de parcerias entre governos federal, estaduais e municipais e entidades da sociedade civil organizada. “A idéia é construir centros de referência para que a mulher possa ser estimulada a denunciar o agressor”.

Na secretaria, funciona uma ouvidoria que atende pelo telefone (61) 410-9377. Uma equipe de advogados e assistentes sociais acompanha o andamento na Justiça de processos relacionados à violência contra a mulher que chegam à secretaria. De acordo com Emília Fernandes, um dos objetivos é agilizar o trâmite desses processos e reduzir a impunidade. “Estamos monitorando 58 casos de denúncias de maus-tratos e de agressão contra mulher”, contabiliza.

Fonte: Agência Brasil