“Reforma” da Previdência Social: o recado que vem da França

Uma das coisas mais perceptíveis na discussão sobre a Previdência Social é o fosso entre discurso e realidade — entre o dizer e o ser. Antes de tudo, é preciso considerar que a palavra previdência remete à idéia de seguro social. Previdência quer dizer qualidade do que é previdente; previsão do futuro. Parece óbvio, mas no raciocínio dos neoliberais essa constatação cedeu lugar à crença de que os recursos que no futuro pagariam as aposentadorias devem incentivar hoje atividades da economia.Por Wagner Gomes, vice-presidente nacional da CUT
Segundo os neoliberais, sem a “reforma” da Previdência Social não há como o país crescer. Essa gente sequer questiona se as fontes garantidoras da poupança advinda das contribuições ao setor serão suficientes para tamanha responsabilidade. Ao desobrigar o patronato de parte das contribuições por meio da “reforma” pretendida pelos neoliberais, certamente os recursos previdenciários diminuirão consideravelmente. Ou seja: até deste ponto de vista a “reforma” da Previdência Social é uma falácia.
A “reforma” vista pelo ponto de vista social, é ainda mais inconsistente. Em nenhum momento foi explicitado por que, exatamente, os trabalhadores precisam deixar de ter no futuro o que eles têm agora. O argumento do peso da conta dos benefícios – o principal motivo alegado pelos neoliberais – nas despesas do Estado é a falácia das falácias. Mesmo aqueles com carteira assinada e contribuições rigorosamente em dia estão longe de receber algo que pudesse passar perto dessa justificativa – aproximadamente 80% dos aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pelos benefícios concedidos a todos os celetistas e autônomos, ganham 1 salário mínimo por mês.
Cerca de 90% deles recebem até 3 salários mínimos e ficam com aproximadamente 60% de todas as despesas com benefícios. Nas cidades, a média de benefícios é de 2,1 salários mínimos e na área rural, de 1 salário mínimo. Se considerado proporcionalmente, o peso dessa conta – comparado, por exemplo, com o peso da conta de juros – representa muito pouco para a economia do país. Mas o seu poder para dinamizar a renda das camadas mais pobres da população é considerável. Para se ter uma idéia desse poder, basta ver os números do crédito consignado – que saíram do zero no fim de 2003 e chegaram a R$ 33 bilhões no início de 2006, após o governo federal ter incluído 23 milhões de aposentados do INSS nesse mercado. Calcula-se que 40% dos aposentados e pensionistas do INSS vivem nas zonas rurais dos cerca de 5.500 municípios brasileiros.
Outra falácia muito comum aos neoliberais é a de que esse modelo de benefício premia a ineficiência – como se a imensa maioria dos trabalhadores vivesse mais como cigarra do que como formiga. Roberto Campos, um dos papas do liberalismo brasileiro, chegou ao capricho de contar quantas vezes a Constituição de 1988 fala em garantias – 44 vezes –, em direitos – 76 vezes – e em deveres – 4 vezes. “A Constituição prometeu-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”, escreveu ele em seu livro de memórias, intitulado A Lanterna na Popa. Essa é a essência da proposta de “reforma” da Previdência. São formulações tão falsas quanto autoritárias, que sustentam a propaganda interesseira e catastrofista sobre o futuro da Previdência.
 
Folhetos de propaganda
 
A aposentadoria já é de fato um problema. Mesmo o sistema atual precisa ser revisto para que a Previdência cumpra o seu papel. Mas essa revisão nada tem a ver com a proposta neoliberal em curso. Os trabalhadores logo terão de se mobilizar para não só impedir retrocessos como lutar pela ampliação do papel do Estado no sistema. Foi esse papel que garantiu, até agora, um sistema de aposentadoria com alguma justiça. Mas isso custou uma revolução – a de 1930. Apesar da “era neoliberal”, na essência há muito do Brasil de Getúlio Vargas no país de hoje – industrializado, geograficamente integrado, predominantemente urbano. Para que o projeto neoliberal triunfe, é preciso destruir a “era Vargas”.
Tem sido assim em todo o planeta – para consolidar a hegemonia neoliberal, todos os avanços sociais do século 20 precisam ser destruídos. Há algum tempo, a CUT recebeu, como denúncia, folhetos de propaganda sobre o potencial lucrativo de alguns países. A República Dominicana oferecia mão-de-obra a um custo, ”incluindo benefícios”, de 1 dólar por hora. Bangladesh garantia mão-de-obra ”produtiva e barata”, com a vantagem de que ”a lei proíbe a formação de sindicatos e as greves são ilegais”. As ameaças a aposentadorias, férias e adicionais de remuneração, de restrições na assistência médica, no seguro-desemprego e em outros benefícios também estão presentes nos países desenvolvidos.
 
Proposta na geladeira
 
Na Europa, o Estado de bem-estar social foi concebido para injetar compaixão no capitalismo. Por toda parte, governos social-democratas criaram benefícios para os idosos, os desempregados e os pobres. Foram estabelecidas regras para aumentar os salários, garantir empregos e melhorar as condições de trabalho. Afirmar que não dá mais para bancar todos esses benefícios, mesmo com os elevados ganhos de produtividade da segunda metade do século 20, é faltar com os mais elementares princípios da verdade. Por isso, os esforços para cortar benefícios afundam em meio à resistência popular — como atestam as sucessivas greves na França. A questão real é que a sobrevivência do Estado de bem-estar social é a condição para evitar a volta do capitalismo sem freios do século 19.
O ponto central dessa polêmica é a previdência social. Em 1988, Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, já antecipava as dificuldades à frente das tentativas reformistas. ”A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros”, afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira — e lá ficou até que o presidente Jacques Chirac foi reeleito e tentou mexer novamente no vespeiro, fazendo o termômetro social atingir as mais elevadas temperaturas.
 
Velhos ao penhasco
 
Milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades francesas, e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando todas as expectativas iniciais. A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. ”As ruas não governam o país”, reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Européia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a reforma da previdência voltou para a geladeira.
Em artigo publicado no jornal Valor Econômico em novembro de 2006, intitulado “Vícios e virtudes da economia globalizada”, Luiz Gonzaga Belluzzo escreveu que diante da proximidade da insolvência dos sistemas privados de aposentadoria é lícito suspeitar que “a única reforma possível da seguridade social no mundo vai contemplar métodos muito antigos de aposentadoria: atirar os velhos ao penhasco”. Se as ameaças aos sistemas públicos de seguridade social não forem contidas, os neoliberais certamente caminharão neste rumo. Eles querem a “reforma” da Previdência para que o Estado se limite a facilitar a vida do baronato contemporâneo e de seus sócios do sistema financeiro. Não há outra explicação lógica para essa sede de “reforma” na Previdência Social.
 
Fonte: Vermelho