Crimes da ditadura são reconhecidos pela primeira vez em documento oficial

Resgatar a memória, a verdade e a justiça sobre o que realmente aconteceu com os mortos e desaparecidos durante o período da ditadura militar é o objetivo da obra Direito à Memória e à Verdade,  lançada ontem (29/08), no Palácio do Planalto. A cerimônia contou com a presença de diversos familiares de vítimas, recebidos antes pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em audiência reservada. Durante a cerimônia de lançamento, Lula afirmou que o governo vai continuar os trabalhos e dar uma resposta aos familiares das vítimas. ”A história do Brasil precisa desta verdade, tal qual ela é”, disse Lula. Ele negou, no entanto, qualquer revanchismo às Forças Armadas.
A publicação é o resultado de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e recupera a história de 479 militantes políticos, que foram vítimas da ditadura militar no Brasil durante o período de 1961 a 1988. Para cada militante, o livro traz a antiga versão para o que supostamente teria ocorrido com os desaparecidos e uma nova versão oficial, obtida depois da pesquisa realizada pela comissão.
É a primeira vez que o Estado elabora um documento oficial em que culpa integrantes de órgãos da repressão militar por crimes contra membros de oposição ao regime vigente na época.
Em 500 páginas, são detalhadas as circunstâncias das mortes de 339 casos analisados pela comissão. Destes, familiares de 221 desaparecidos foram indenizados pelo Estado – 118 casos foram indeferidos. Segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), os valores das indenizações variaram de R$ 100 mil a R$ 152 mil.
O levantamento de informações foi feito por familiares e advogados, com base em depoimentos de outros presos, de agentes do Estado, pessoas envolvidas no processo de repressão e em documentos encontrados em arquivos públicos, abertos à consulta.
Em seu discurso durante o lançamento, Lula garantiu que o governo continuará fazendo o que for preciso para contar a história do Brasil do jeito que ela realmente aconteceu. “Nós temos disposição e vontade política para continuar fazendo o que for preciso fazer para que a gente possa fazer com que a história do Brasil seja contada com uma única verdade. Ou melhor, com aquela verdade que todo mundo sabe que existe, mas que está mal contada”, disse o presidente.
O presidente também prometeu encaminhar ao Arquivo Nacional os documentos que permanecem sigilosos sobre o período. “Grande parte dos documentos já foi para o Arquivo Nacional. O que falta será mandado para o Arquivo Nacional porque queremos contribuir e trabalhar para que a sociedade brasileira vire a página de uma vez por todas (…) esquecendo um pouco o que foi o regime autoritário no Brasil”, disse Lula.
”Essas iniciativas, guiadas pela defesa incondicional dos direitos humanos, são indispensáveis para as famílias dos mortos e desaparecidos políticos. São indispensáveis para os poderes institucionais do País, são indispensáveis para a democracia, são indispensáveis para as novas gerações e são indispensáveis para que esse passado nunca mais se repita”, completou o presidente.

Acabar com o sigilo eterno
 
A necessidade da abertura dos arquivos militares foi destacada pelo presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Rodrigues Barbosa. “No Brasil, ainda não se pode afirmar que houve uma plenitude do conhecimento da verdade, os arquivos ainda não foram totalmente abertos, assim como ainda não foram identificados os desaparecidos durante a Guerrilha do Araguaia”, afirmou. Barbosa lembrou que existe iniciativa do governo de acabar com o “sigilo eterno” de arquivos e disse que deverá ser criado um centro de documentação a respeito da repressão na ditadura.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, garantiu que as Forças Armadas receberam a publicação do livro com naturalidade. Segundo ele, não haverá reação dos militares e, se houver, ela não ficará sem resposta do governo.
O jurista Fábio Konder Comparato acredita que a iniciativa de lançar esse livro é “um marco histórico”. “É a primeira vez que oficialmente se reconhecem os crimes do regime militar”. “Eu acho que em boa medida ele resgatou esse pecado grave, essa omissão culposa dos sucessivos governos depois de extinto o regime militar”, disse.
Para Comparato, as pessoas que sabem onde estão os corpos de desaparecidos políticos da época do regime militar continuam praticando o que se chama de “crime continuado”, apesar da Lei de Anistia aprovada em 1979. “Pode-se e deve-se, é um dever moral iniciar uma ação penal contra os culpados por essa ocultação de cadáver”, afirmou em entrevista à Agência Brasil.

Vanucchi: ”sem revanchismos”

Segundo o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannnuchi, organizador da publicação, a obra não tem o objetivo de promover ”revanchismo”, mas sim o de buscar a reconciliação na sociedade brasileira. “Ninguém pode e ninguém será movido por sentimentos de revanchismo. Mas o silêncio e a omissão também não permitem a idéia de reconciliação, que só pode nascer do profundo conhecimento daquilo que ocorreu, sobretudo o direito inalienável de 140 famílias de sepultar os seus mortos”, disse o ministro, em alusão ao número de pessoas desaparecidas que ainda não tiveram seus restos mortais encontrados.
Cientista político e jornalista, Paulo de Tarso Vannuchi foi preso político entre 1971 e 1976 e um dos 34 signatários do amplo dossiê entregue ao presidente nacional da OAB, Caio Mário da Silva Pereira, em 23 de outubro de 1975, arrolando os nomes de 233 torturadores, descrevendo os métodos de tortura, as unidades onde eram praticadas e apresentando uma primeira lista geral dos assassinados desde 1964. É co-fundador e membro do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae. Trabalhou na equipe que realizou, sob sigilo, o projeto de pesquisa “Brasil Nunca Mais”. Co-fundador do Instituto Cajamar, ao lado de Lula, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Perseu Abramo e outros, e desde dezembro de 2005, secretário especial dos Direitos Humanos, que possui status de ministério.
Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, Vannuchi afirma que ”a partir de agora temos um livro oficial com carimbo do governo federal, que incorpora a versão das vítimas”. Segundo ele, um dos desafios que ainda se colocam para a Comissão é a localização dos restos mortais dos desaparecidos durante o regime. No entanto, para que isso aconteça, ele lembra que ”é preciso que haja um procedimento interno dentro das Forças Armadas, no sentido de que eles ouçam militares que participaram da repressão e que tenham informações para podermos cumprir esse direito milenar e sagrado das famílias de enterrar seus entes queridos”.
A primeira edição do livro tem tiragem de 5 mil exemplares, que vão ser distribuídos a comissões de familiares, centros de pesquisa, imprensa, parlamentares e bibliotecas públicas. Uma versão eletrônica da publicação também está disponível na página da Secretaria Especial de Direitos Humanos na internet (www.sedh.gov.br).

Data simbólica

A data do lançamento do relatório tem um propósito: é o dia seguinte ao aniversário de 28 anos da Lei da Anistia (1979), promulgada pelo então presidente João Baptista Figueiredo.
Segundo a comissão responsável pelo livro, o lançamento nesta data ”sinaliza a busca de concórdia, o sentimento de reconciliação e os objetivos humanitários que moveram estes 11 anos de trabalho”.
Em 1995, dez anos depois do fim do regime militar, o governo Fernando Henrique Cardoso promulgou a lei 9.140, que previa o reconhecimento da responsabilidade estatal por mortes e desaparecimentos por motivação política entre setembro de 1961 e agosto de 1979. Na época, foi instalada a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.
FHC instalou a Comissão da Anistia em 2001, e, em novembro de 2002, sancionou a lei que previa indenizações para perseguidos políticos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Em 2004, já no governo Lula, estendeu-se as indenizações às famílias dos torturados que depois se suicidaram.

Fonte: Vermelho, com agências