TV Digital: Ministério Público reacende disputa por introdução da tecnologia no País

Entre os meses de maio e junho, quando a disputa eleitoral ainda estava iniciando, o debate sobre o futuro da televisão brasileira esteve em evidência por conta da decisão sobre qual padrão tecnológico seria adotado para a implantação da TV Digital no Brasil. Em semanas, o governo brasileiro botou o pé no acelerador e decidiu pela tecnologia japonesa através da publicação do Decreto 5820 de 2006 e por um acordo de cooperação com o governo do Japão. Na norma, além dos aspectos tecnológicos, constaram bases para que fosse iniciada a transição do sistema analógico para o digital na rede aberta. Isso se daria com a entrega de um canal adicional para as atuais emissoras com vistas a realizar a transição em até 10 anos e a definição do Ministério das Comunicações como responsável pela aprovação de um cronograma contendo as áreas e prazos para este processo.
O período seguinte à publicação do Decreto foi marcado por um silêncio e por algumas notícias na mídia especializada sobre as decisões do governo acerca do incentivo à produção dos conversores (set top boxes) e da criação do Fórum Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), para dar suporte em âmbito técnico à implementação do sistema. A calmaria foi rompida esta semana, quando o Ministério Público Federal entrou com Ação Civil Pública pela anulação do Decreto 5820 baseado numa série de ilegalidades em que a norma teria incorrido.
A iniciativa do MPF trouxe à tona a disputa intensa das semanas anteriores à publicação do decreto, baseando-se em críticas já apresentadas por organizações da sociedade civil que questionaram a decisão do governo. A ação do MPF é uma evidência de que não há como iniciar um processo de migração para a plataforma digital sem uma revisão do marco regulatório das comunicações. O que governo está tentando fazer é legislar por meio de um decreto, coisa muito pouco saudável para um país que se pretende democrático”, comenta Diogo Moysés, do Coletivo Intervozes.
A ação julga ter havido ofensa ao princípio da motivação dos atos administrativos, afirmando que não houve justificativas aceitáveis e nem sequer explicitadas (uma vez que o ato do Executivo não é acompanhado de exposição de motivos) para a edição do decreto. e acordo com o documento, o Decreto 5820 “revogou o Decreto n.º 4.910/2003, ao deixar de observar o procedimento que ela própria se impôs, no que se refere ao processo de definição do modelo de referência do sistema brasileiro de televisão digital”. O documento cita explicitamente o desrespeito a procedimentos estabelecido na norma editada em 2003, como a produção de um relatório por parte do comitê de desenvolvimento (formado por ministros) com o conteúdo previsto e a submissão deste relatório ao Comitê Consultivo (composto por representantes da sociedade civil).
A ação também questiona o uso do instrumento de consignação para dar aos atuais concessionários mais uma faixa do espectro eletromagnético por onde seria transmitido o conteúdo em sinal digital até o final do prazo de transição. Ao estabelecer este prazo, 10 anos, que na maioria dos casos não coincide com os prazos de concessão, a União estaria invadindo competências do Congresso Nacional, poder responsável por aprovar este tipo de outorga, realizando uma ‘renovação branca’. Mais do que o instrumento da consignação, a ACP critica a forma como este aparece no decreto, especialmente a manutenção do uso do espectro como orientação para o ganho das concessões. Hoje os sinais de rádio e TV são transmitidos pelo espectro magnético, que na parte destinada a estes meios têm um tamanho definido e comporta um determinado número de canais. A legislação indica que o Estado conceda o espaço necessário a execução de um serviço, no caso do de televisão aberta. Segundo o decreto, uma emissora que queira fazer a transição receberá o mesmo espaço de espectro (6 MHz) dado hoje na situação analógica. Mas, para o MPF, com a possibilidade dada pela TV digital de comprimir informação, os concessionários não poderiam receber esta mesma faixa, mas apenas aquela necessária para a transmissão em sinal digital.
Outra alegação foi que a escolha pelo padrão ISDB gerará encargos aos cidadãos brasileiros, uma vez que, segundo documentos produzidos pelo CPqD sobre o estado da implantação desta tecnologia no mundo, o decodificador (chamado de set top box) deste padrão é o mais caro do planeta. Por fim, o documento do Ministério Público vê ilegalidade no fato do Decreto 5820 ter admitido a prestação de serviço interativo por parte das radiodifusoras. Este serviço, explicam os autores no documento, envolve bidirecionalidade, característica presente nos serviços de telecomunicações. Como radiodifusão e telecomunicações foram separados no âmbito da legislação na ocasião da privatização da telefonia brasileira, uma emissora de TV ou rádio não poderia prestar serviços interativos. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, saiu em pronta defesa do governo e afirmou que tem resposta para todos os argumentos da Ação. “A ação tenta contestar a forma como o governo decidiu. Isso pode trazer uma certa intranqüilidade, mas vamos responder, porque há resposta para todos os pontos”, afirmou ao noticiário especializado Tela Viva. Indo ponto a ponto de acordo com o ministro. Segundo Costa, os procedimentos previstos no Decreto 4901 teriam sido respeitados, houve um relatório do Comitê de Desenvolvimento e ele foi submetido aos membros do Conselho Consultivo.
“Nunca houve nenhuma consulta formal sobre nenhuma posição do governo. As únicas manifestações formais foram sobre os primeiros relatórios do CPqD. O relatório final, contudo, nunca foi conhecido oficialmente. O Comitê Consultivo foi esvaziado a ponto de ter que se auto-convocar em algumas ocasiões”, contesta Celso Schroder, coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e um dos integrantes do extinto conselho. No questionamento referente à impossibilidade das emissoras realizarem interatividade, o governo argumenta que o conceito trabalhado no novo decreto consiste apenas na manipulação de conteúdo no receptor (como a montagem de grades de programação por parte do telespectador), e que portanto não caracterizaria uma transmissão bidirecional (só permitida no caso de serviços de telecomunicações). Este tipo de circulação de dados, que seria feito mediante uso de um canal de retorno para que o cidadão pudesse enviar mensagens às emissoras, seria ‘interação’, outro serviço ainda não previsto em normas. “Se a interatividade é apenas local, de longe não é a interatividade idealizada pelos pesquisadores brasileiros e, muito menos, a interatividade que pode fazer da TV digital um instrumento de inclusão social”, rebate Gustavo Gindre, pesquisador do tema.
Segundo Gindre, as respostas dadas pelo governo são ‘rasteiras’ e ‘grosseiras’. Rasteiras pelo fato de se utilizarem dos grandes meios de comunicação, ‘que sempre contaram com o apoio do Ministério das Comunicações e nunca ouviram a sociedade civil’, para serem difundidas à população. E grosseiras, continua, pela desqualificação promovida contra os críticos da opção do governo. O pesquisador faz referência às declarações de Hélio Costa de que a iniciativa seria coisa de ‘quem não entende nada do assunto’ e do assessor jurídico da pasta, Marcel Bechara, para quem o Fórum SBTVD (cujos integrantes indicados pelo governo abrangem apenas os empresários de TV e do setor de eletrônica, além de alguns pesquisadores), não poderia ser igual à ‘casa da Mãe Joana’, citando explicitamente a composição do Conselho Consultivo. “Isso evidencia uma lógica de vida própria que o Ministério das Comunicações tem dentro do governo Lula, funcionando como braço da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV)”, diz.
Para entidades que lutam pela democratização da comunicação, a iniciativa do MPF pode corrigir um erro histórico do governo e criar condições para que o debate volte novamente aos trilhos, com foco nos serviços, no conteúdo e no novo marco regulatório necessário para abrigar estas transformações. A aposta é na dificuldade do governo na resposta dos argumentos. Dois documentos divulgados pelo governo (uma exposição de motivos do Decreto 5820 e um parecer jurídico da Casa Civil) demonstram que a confiança manifesta por Hélio Costa pode ser um castelo de areia.

Fonte: Carta Maior