Pinochet morre sem pagar por seus crimes: para os parentes de suas vítimas, resta o vazio

A morte de Pinochet e a luta pela memória e pela história

A ditadura Pinochet não foi uma aberração isolada, “típica de uma república sul-americana”, como querem alguns. Os aliados que teve em vida, nomes como Henry Kissinger, Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Milton Friedman, indicam em que contexto sua figura e seus atos foram possíveis.
No dia 11 de setembro de 1973, o compositor e cantor Victor Jara foi preso na universidade onde trabalhava, juntamente com cerca de 600 estudantes, e levado para o Estádio Nacional do Chile, em Santiago. Neste mesmo dia, é torturado e assassinado por militares que o retiraram de uma fila de prisioneiros que iam ser transferidos. Dias depois, seu corpo fuzilado, com as mãos amputadas, é identificado em um necrotério por sua esposa, a bailarina inglesa Joan Jara. Essa é uma das histórias que compõem o currículo do general Augusto Pinochet, que comandou uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. O ex-ditador morreu neste domingo, aos 91 anos, no Hospital Militar de Santiago. Sob seu regime, mais de 3 mil pessoas foram assassinadas. Adotou a tortura e o extermínio como método sistemático para se livrar de opositores; e a limpeza étnica, como método para “se livrar” da pobreza extrema no país. Pesam contra ele acusações de assassinatos, torturas, seqüestros, enriquecimento ilícito e tráfico de drogas.
Entre os milhares de crimes cometidos sob a ditadura Pinochet, um deles tem significado especial. No dia 11 de setembro de 1973, o general comandou um golpe de Estado que derrubou o governo socialista de Salvador Allende. O Palácio La Moneda foi atacado por terra e bombardeado por aviões da Força Aérea chilena. Allende morreu dentro do palácio tentando resistir ao golpe de Pinochet, apoiado diretamente pelo governo dos Estados Unidos. Pinochet também é apontado como responsável direto pela morte de ministros e oficiais do governo Allende. Em setembro de 1976, Orlando Letelier, ex-embaixador chileno nos Estados Unidos e ex-ministro de Allende, foi assassinado em Washington, através de uma bomba deixada em seu carro. Dois anos antes, em 1974, o general Carlos Prats, comandante do Exército durante o governo Allende, foi assassinado em circunstâncias similares, em Buenos Aires. Tudo isso sob o olhar complacente dos EUA.

A tristeza de Thatcher

Durante os anos 70, Pinochet foi um dos principais articuladores da Operação Condor, movimento de repressão, tortura e extermínio de militantes de esquerda, que reuniu seis ditaduras sul-americanas, incluindo a brasileira, com o apoio político e logístico dos EUA, especialmente através da atuação da Escola das Américas. No auge da Guerra Fria, essa escola, criada pelo governo norte-americano, recebia militares latino-americanos para cursos de formação, que incluíam técnicas de tortura e assassinato. Entre seus principais aliados e apoiadores, aparecem nomes como o do ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, do ex-presidente Ronald Reagan, do economista Milton Friedman e da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Ao receber a notícia da morte do ditador, na tarde deste domingo, Thatcher disse, através de seu porta-voz, que estava “profundamente triste” e transmitiu condolências à família. Em 1982, Pinochet apoiou a Inglaterra contra a Argentina, na Guerra das Malvinas.
A manifestação de Thatcher ilustra o que representou a ditadura de Pinochet. Com o apoio dos economistas da Escola de Chicago, que teve em Milton Friedman um de seus principais expoentes, o governo militar chileno foi o seguidor mais ortodoxo do ideário neoliberal que se tornou hegemônico no mundo a partir dos governos de Ronald Reagan, nos EUA, e de Thatcher, na Inglaterra. Os governos destes dois países, entre outros, não hesitaram em apoiar a ditadura chilena e em fechar os olhos para os crimes de Pinochet sob o pretexto de garantir a “vitória do mundo livre” na região. Vitoriosa “a liberdade”, o próximo passo foi implementar um radical processo de privatizações no país e apontá-lo como modelo que deveria ser seguido pelos demais países da região. Pinochet foi a expressão mais clara do cinismo e da hipocrisia de um modelo que falava em liberdade, durante o dia, e apoiava torturas e assassinatos à noite.

O enterro de Pinochet

No final da vida, Pinochet conseguiu se livrar da cadeia. Na lista dos inúmeros processos movidos contra o ditador no Chile e na Europa estão 3.197 casos de assassinatos, mortes que permanecem vivas na memória do povo chileno. A atual presidente do Chile, Michelle Bachelet, foi detida junto com a mãe durante a ditadura, enquanto seu pai, um oficial da Força Aérea, morreu torturado pelos militares. Os crimes do general Pinochet não se limitam ao campo político. Investigadores internacionais descobriram contas abertas em seu nome no exterior, com pelo menos 27 milhões de dólares em depósitos, sem origem determinada. Agora, em 2006, o general Manuel Contreras, que chefiou a Dina, polícia secreta chilena, durante a ditadura militar, acusou Pinochet e o filho deste, Marco Antonio, de envolvimento na produção clandestina de armas químicas e biológicas e no tráfico de cocaína. Segundo Contreras, boa parte da fortuna de Pinochet veio daí.
A morte de Pinochet representa um problema político para o governo de Michelle Bachelet. Entre outras questões, ela terá de resolver como será o enterro do ex-ditador. Segundo uma pesquisa divulgada neste domingo pelo jornal La Tercera, a maioria da população chilena (55%) rejeita que o enterro seja acompanhado por honras de Estado. Apenas 27% dos consultados manifestaram-se favoráveis a honras de Estado para o general. Por outro lado, 51% dos chilenos aprovaram a idéia de que Pinochet recebesse honras como ex-comandante do Exército, contra 32% que rejeitaram a proposta. Também foi perguntado aos chilenos se eles aprovavam ou não a declaração de luto oficial de três dias após a morte de Pinochet. 72% responderam não, contra apenas 18% que se manifestaram a favor do luto oficial. Já a família do ditador disse preferir um funeral privado. As feridas da ditadura permanecem abertas no Chile. O tratamento que será dado à morte de Pinochet indicará como anda seu processo de cicatrização.

A luta dos mortos

Em Madri, ao tomar conhecimento da morte de Pinochet, a escritora Isabel Allende, filha de Salvador Allende, defendeu que os julgamentos devem continuar mesmo com a morte do ditador. Ela disse que dói o fato de nunca terem concluído nenhum julgamento contra Pinochet. “Os julgamentos têm que continuar. Com sua morte, não se fecha nenhum capítulo, nem o da verdade, nem o da justiça, nem o da responsabilidade”, declarou a jornalistas. Isabel Allende também rejeitou qualquer tipo de homenagem de Estado a Pinochet, observando que ele foi “a pessoa que liderou a pior ditadura na história do Chile”. A história do que aconteceu no Chile ainda está para ser contada. A ditadura Pinochet não foi uma aberração isolada, típica de uma república sul-americana como querem alguns. Os aliados que teve em vida, nomes como Kissinger, Reagan, Thatcher e Milton Friedman, indicam em que contexto sua figura e seus atos foram possíveis.
Quando Isabel Allende diz que a morte de Pinochet não fecha nenhum capítulo, indica que há contas que ainda estão em aberto contas relativas à história e à memória do povo chileno. Suas palavras lembram uma das Teses Sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin, escritas em 1940. Na tese VI Benjamin afirma: “O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.

Fonte: Agência Carta Maior (Marco Aurélio Weissheimer)

Pinochet, uma marca sangrenta na história do Chile

Morto aos 91 depois de enfartar no Hospital Militar de Santiago, o general Augusto Pinochet enfrentava quatro processos por violação dos direitos humanos e outros dois por enriquecimento ilícito. Problemas de saúde retardaram andamento dos autos, impedindo julgamento do ditador.

Agência Ansa

SANTIAGO – Augusto Pinochet, que morreu neste domingo (10) aos 91 anos, esteve à frente de uma ditadura sangrenta e marcou a história política chilena das últimas três décadas, depois da sua irrupção com o golpe militar de 11 de setembro de 1973, que depôs o governo socialista de Salvador Allende.
Pelos fatos que ocorreram nos 17 anos que se seguiram, nos quais liderou uma ditadura sangrenta, Pinochet prestou contas à história somente em seus últimos anos de vida, quando viveu sob prisão domiciliar e foi processado pelo simbólico caso da Caravana da Morte, a missão militar que percorreu o país e deixou 75 mortos.
Seus processos judiciais, no entanto, não se limitaram às violações dos direitos humanos. Ele também foi investigado por uma suposta fortuna depositada em contas secretas no exterior.
Nascido em Valparaíso (140 quilômetros a oeste de Santiago) em 25 de novembro de 1915, Pinochet entrou aos 18 anos na Escola Militar. Galgou postos na corporação e em 23 de agosto de 1973 foi nomeado comandante em chefe do Exército pelo presidente Allende, por recomendação de seu antecessor, o general Carlos Prats.
Dezenove dias mais tarde se levantou contra Allende e, um ano mais tarde, Prats morreu em um atentado a bomba em Buenos Aires, onde vivia exilado, em uma ação planejada pela Direção de Inteligência Nacional (Dina), a temida polícia da ditadura.
Pinochet exerceu o poder com mão-de-ferro: fechou o Parlamento e os meios de comunicação que comungavam ideologicamente com o governo de Allende; declarou ilegais os partidos políticos e as organizações sindicais; e converteu o Estádio Nacional de futebol em um gigantesco campo de concentração de prisioneiros políticos.
O seu regime acumulou 16 condenações das Nações Unidas (ONU) por violações aos direitos humanos e em 1991 a Comissão Rettig, conformada para investigar internamente tais violações, constatou que entre 1973 e 1990 houve 1.197 presos desaparecidos e 1.888 executados sem julgamento prévio. O posterior Relatório Valech recebeu as denúncias de 35 mil sobreviventes das prisões secretas, além de um milhão de exilados, impedidos de voltarem ao país.
Em 1978 decretou uma Lei de Auto-anistia para proteger os membros dos temidos aparatos de segurança, a Dina, que mais tarde se tornou a Central Nacional de Informações (CNI), integrada por militares e civis que mantiveram o país sob um estado de terror.
Em 1980, ordenou uma nova Constituição que concentrava todos os poderes na sua pessoa e prolongou o seu mandato presidencial por oito anos. Em 7 de setembro de 1986, saiu ileso do único atentado perpetrado contra ele. Foi um ato da pró-comunista da Frente Patriótica Manuel Rodríguez, que atacou a sua comitiva quando voltava de sua residência de descanso, a 30 quilômetros de Santiago.
Em agosto de 1988 foi designado pela Junta Militar (que durante toda a ditadura exerceu uma espécie de função de poder legislativo) candidato único à presidência de 5 de outubro, quando 55,2% dos chilenos responderam “não” ao plebiscito sobre a continuidade do governo de Pinochet por mais oito anos. Então, teve que convocar eleições para dezembro de 1989.
Pinochet entregou o cargo em 11 de março de 1990 no novo Congresso Nacional situado em Valparaíso, mas continuou a exercer o poder através do Comando em Chefe do Exército, que reteve constitucionalmente por oito anos e por onde defendeu os enclaves autoritários da Constituição, garantiu a impunidade aos militares e civis comprometidos nas violações aos direitos humanos e impediu uma transição de fato para a democracia, favorecendo ações que marcaram o início de uma fraca transição à democracia.
Em 16 de outubro de 1998, foi preso em uma clínica em Londres por ordem do juiz espanhol Baltazar Garzón, que pretendia processá-lo por violações aos direitos humanos. Permaneceu detido por 503 dias até que o ministro do Interior britânico, Jack Straw, autorizou o seu retorno ao Chile por motivos de saúde.
No Chile, se apresentaram mais de 300 acusações por familiares das vítimas da ditadura, e o juiz Juan Guzmán conseguiu interrogá-lo, processá-lo e prendê-lo pelos crimes da Caravana da Morte. No entanto, a Corte Suprema acatou os motivos de saúde apresentados pela defesa e determinou o perdão provisório em julho de 2002.
No dia seguinte, Pinochet renunciou ao seu cargo vitalício no Senado, com o que parecia encerrar a sua história política, pois os partidos de direita (nos quais participavam colaboradores de seu governo) se afastaram dele.
Em junho de 2004, uma investigação do Senado norte-americano descobriu que Pinochet mantinha contas secretas milionárias no Banco Riggs, levantando suspeitas de que a origem desse dinheiro podia vir do comércio ilegal de armas, do narcotráfico ou do desvio de fundos do Fisco chileno.
Pinochet enfrentou a reabertura dos processos por violações aos direitos humanos, a perda de sua imunidade como ex-presidente e estava sendo julgado em quatro destes processos, além de outros dois por enriquecimento ilícito. O ex-ditador morreu hoje às 14h15, horário chileno, ao enfartar no Hospital Militar de Santiago.

Fonte: Carta Maior