Século 21: a lona está caindo

“Tem que romper o espírito corporativo porque a luta de um é a luta de todos”, afirmou o escritor e assessor de movimentos sociais Frei Betto ao final de sua palestra na abertura do 8° Congrejufe, na sexta-feira. Ao contextualizar o período histórico hoje no Brasil e no mundo, ele destacou que se está vivendo uma mudança de época, como a que viveram personalidades históricas como o filósofo René Descartes, o pintor e escultor Leonardo da Vinci e o astrônomo e filósofo Galileu Galilei, que produziram sua obra ao longo dos anos 1500, na passagem do período medieval para o período moderno. O atual período, disse Frei Betto, se caracteriza pelo ingresso na chamada pós-modernidade. Compreender essa transição é fundamental para não se perder na turbulência dos fatos e para poder inseri-los na lógica que rege o mundo hoje e ser capaz de transformá-la.

O palestrante usou o conceito de paradigma, usado na ciência, para mostrar o impacto desta transição: “Comparo o paradigma com a haste central da lona do circo. Se a haste é retirada, a lona desaba”. Quando a igreja detinha o poder, firmava-se na cosmologia do astrônomo e matemático grego Ptolomeu, que viveu no primeiro século d.C. e cujo modelo baseava-se na centralidade da terra em relação ao sol. Já nos anos 1500, o astrônomo e matemático polonês Nicolau Copérnico fez um exercício epistemológico, propondo a chamada teoria heliocêntrica, de que a terra move-se em torno do sol. A cabeça, disse Frei Betto, pensa onde os pés pisam, como diz o ditado. Muda-se o piso dos pés, muda-se a cabeça: “Todos olhavam o sol com os pés na terra, mas Copérnico pensou em como seria se tivesse os pés no sol, e isso o fazer ver a realidade de forma diferente, de forma científica”. Ligados às descobertas marítimas, às divisões na igreja, todos esses elementos contribuíram para a falência do período medieval, marcando a mudança de paradigma da fé para o paradigma da razão, calçado na ciência e tecnologia.

Já nos anos 1800, o pensador Karl Marx também inovou ao interpretar a realidade não a partir do ponto de vista da elite, e sim do proletariado nascente na Revolução Industrial. O mesmo se deu com o educador e filósofo pernambucano Paulo Freire, que produziu sua obra na segunda metade do século passado. Freire, disse Frei  Betto, revelou como a “cabeça do oprimido tende a ser o hotel do opressor”, e portanto a educação transformadora deve mostrar ao oprimido a sua realidade de opressão.

Nos últimos 150 anos, destacou o palestrante, ocorreram três grandes crises: o fim da hegemonia da produtividade rural, gerada pelos avanços da Revolução Industrial, o aparecimento do socialismo na Rússia e a industrialização, quando houve uma fase de otimismo, mas a grande produção levou à crise de 1929, seguida por duas guerras e, depois, a formação de um mundo bipolar, com URSS e EUA à frente da chamada Guerra Fria.

Frei Betto afirmou que, nesse processo, houve avanços na ciência e na tecnologia, mas questionou: para quê?: “O ser humano foi até a lua, mas bilhões de pessoas vivem com fome”, comparou. O palestrante afirmou que o capitalismo é para um terço da humanidade, porque usufruir do que ele proporciona implica uma verdadeira loteria. Nesse sentido, Frei Betto disse que um dos grandes equívocos do chamado socialismo real foi socializar os bens materiais e privatizar os bens simbólicos. O capitalismo faz o contrário: socializa o sonho, difunde bens simbólicos para encobrir a privatização dos bens materiais. “A televisão enche a cabeça das pessoas, fazendo crer que elas terão possibilidade de ascensão social, seja pelo trabalho, pela loteria, e com isso elas ficam pacificadas”, elucidou o palestrante.

 

América Latina

Em sua exposição, o palestrante também analisou brevemente a situação da América Latina nas últimas quatro décadas, quando ocorreram três grandes ciclos políticos: as ditaduras, governos messiânicos neoliberais e os governos democráticos populares. No caso do Governo Lula, ele avaliou que havia duas alternativas de governo: apoiar-se em quem o elegeu ou apoiar-se nas forças políticas do Congresso Nacional. O presidente da Bolívia, Evo Morales, articulou-se com o movimento social, mas Lula, ao contrário, articulou-se com forças políticas do Congresso Nacional, onde há bancadas que representam principalmente os interesses empresariais, do agronegócio, da comunicação. Com isso, o movimento social, avaliou Frei Betto, ficou desamparado: “Apesar das melhorias, o governo Lula não fez reformas estruturais fundamentais, como a política e a agrária, e nem avançou em dois fatores fundamentais, a saúde e a educação”.

Em sua fala, Frei Betto criticou o fato de que os movimentos sociais abandonaram o trabalho de base, próximo das populações empobrecidas, e parte da explicação para isso, avaliou, deu-se com a eleição de Lula. O resultado é que somos deseducados em termos de democracia participativa. O que se tem hoje no país é a democracia delegativa e, minimamente, a participativa. O desafio é construir a democracia comunitária, que, baseada na força da organização social, poderá se refletir nas estruturas de poder do país.  

Ao final da palestra, Frei Betto fez alusão à qual seria o paradigma da pós-modernidade: “É cedo para dizer, mas talvez seja a mercantilização de todas as dimensões da vida humana”. Ele citou as novas tecnologias, que vêm desagregando movimentos sociais e sindicais. Antes os trabalhadores participavam das assembleias dos sindicatos. Agora, com a internet, as pessoais participam das redes virtuais, trocam mensagens, aderem a abaixo-assinados por alguma causa, mas não saem da frente do computador. “Estamos nos desumanizando com as redes virtuais”, alertou.

Para Frei Betto, há três desafios colocados para os movimentos: reelaborar um projeto para o país calcado na formação histórica, retomar a formação política das novas gerações, para ter quadros que sucedam os atuais, e apoiar todas as forças que, de alguma forma, fazem a luta para dar outra cara para o paradigma da pós-modernidade.

 

Por Miriam Santini de Abreu/Fenajufe