Presidente da Câmara dos Deputados já fez discurso contra combate do trabalho escravo

Por Imprensa

Severino Cavalcanti (PP-PE), recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados e terceiro na hierarquia de comando do país, em discurso proferido no dia 2 de março de 2004, atacou o combate ao trabalho escravo que vem sendo realizado no Brasil.

“Ora, Senhoras e Senhores Deputados. Vamos parar de hipocrisia, de fingir que somos a França, os Estados Unidos ou a Alemanha e que podemos copiar as suas avançadas legislações trabalhistas”, disse Cavalcanti em um trecho do discurso.

Ele defendeu os proprietários rurais e uma suposta cultura do campo, que não exigiria a garantia dos direitos trabalhistas devido à realidade da região, diferente das cidades. “Em Minas, como na Amazônia, no Nordeste, outras regiões ou Estados brasileiros, milhares de bóias-frias são deslocados para as fazendas conforme o trabalho que surge. Fica difícil para o produtor ou fazendeiro, muitas vezes com estrutura precária, registrar esse trabalhador pelo espaço de um ou dois dias, ou curtos períodos de tempo”.

Caso o deputado mantenha na prática o teor de seu discurso, projetos que estão na pauta de votação, como o que expropria as terras em que forem encontradas trabalho escravo podem nunca ser aprovados. “Não vamos resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das muitas e controversas versões de ‘trabalho escravo’”, afirmou o deputado.

Leia abaixo a íntegra do discurso do atual presidente da Câmara dos Deputados:

“Sessão de 2 de março 2004.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

Passei os dias do feriado de carnaval percorrendo todo o interior do meu estado de Pernambuco. Pude constatar, mais uma vez, o fosso existente entre o discurso oficial de apoio à geração de empregos e a situação real de falência e endividamento dos micro e pequenos empresários. Vi o desespero de milhares de famílias inteiras de desempregados e as justas preocupações de produtores rurais com a banalização de processos e acusações contra a prática de trabalho escravo, o que só vem dificultando a contratação de mão-de-obra e aprofundando o quadro de miséria na nossa região.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,
Vossas Excelências sabem que não tenho e nunca tive um palmo de terra . E não tenho aqui procuração para defender quem as tem, seja em latifúndio ou em pequenas propriedades. Mas não podemos assistir, de braços cruzados, ao desvirtuamento e transformação de uma campanha séria e correta – como o combate ao trabalho escravo – em exigências absurdas que começam a inviabilizar o trabalho no campo.

É claro que há abusos que precisam ser combatidos. Mas exageros e inverdades também vêm ocorrendo. E todos sabemos as desastrosas conseqüências dessa situação na zona rural, que vem deixando pais e mães de família sem comida para dar aos seus filhos, situação agravada pelos desajustes e morosidade na implantação do Programa Fome Zero.

Repercutiu em todo o Nordeste – e de certo em todo o país – as acusações de que um senador da República, um ex-deputado desta Casa, João Ribeiro (PFL-TO) – que se vem destacando com um trabalho sério em benefício do seu Estado e do povo de sua região – estaria mantendo “trabalhadores escravos” em uma fazenda no Norte do país. Quem lia ou ouvia os textos das reportagens veiculadas por toda a mídia, no entanto, se surpreendia com alguns detalhes das condições de vida dos chamados “escravos”: não contavam com banheiros, tomavam água de um rio da bacia amazônica, estavam há 15 dias em um serviço de roçagem de pasto de uma fazenda de 160 alqueires (que em nosso país é considerada pequena), não tinham carteira assinada e nem cama para dormir.

Ora, Senhoras e Senhores Deputados. Vamos parar de hipocrisia, de fingir que somos a França, os Estados Unidos ou a Alemanha e que podemos copiar as suas avançadas legislações trabalhistas.

No nosso país, o governo que quer exigir dos proprietários e produtores rurais que façam banheiros em roçagem de pastos ou na colheita do feijão nunca foi capaz de garantir à família de um trabalhador rura l- e até urbano – sequer uma cisterna para matar a sede dos seus filhos. Banheiros, a grande maioria do povo humilde de nossa região só sabe que existe porque viu em algum lugar ou na televisão.

É preciso desconhecer a realidade das condições e dos costumes regionais para exigir de um produtor ou de um fazendeiro, nas matas da Amazônia ou no sertão nordestino, privadas no meio do mato; chuveiros ou água tratada na beira de um rio ou de um riacho que não tem problema de poluição; alojamento com camas e colchões para trabalhadores que, mesmo em suas casas, habitualmente dormem e descansam em redes , quando não o fazem em pedaço de couro ou esteira espalhados pelo chão; carteira assinada para prestação de serviços sazonais, como as empreitadas para roçar ou colher pequenas áreas.

Parecem ignorar que o trabalhador que faz um serviço por “empreita” , muitas vezes após longos períodos sem qualquer trabalho, tem interesse em concluir rapidamente a sua tarefa e se aventurar em busca de novas frentes de serviço, trabalhando até mesmo nos finais de semana. Ele sabe que, muitas vezes, só recebe o pagamento após concluído o trabalho e isto é praxe em todo o país.

Até há pouco tempo, escravo era quem vivia em sistema de escravidão, submetido a castigos e acorrentado, sem salário e despido até mesmo do direito de ir e vir. Agora, em artigo do Jornal do Brasil denunciando “o trabalho escravo”, edição de 26 de fevereiro deste ano, “a condição de trabalhador escravizado é a de alguém que não pode decidir por si próprio, não é sujeito de direitos e é tratado como mercadoria”, na definição da professora Adonia Prado, da Universidade Federal Fluminense.

Ora, Senhoras e Senhores Deputados. Com esse perfil de “escravo” temos , infelizmente, a grande maioria do povo brasileiro que vive em condições subumanas e, até para comer, precisa da tutela do Estado. Neste caso, o governo seria o grande capataz, coronel e senhor da imensa senzala que ainda persiste em nosso país, apavorando até mesmo quem não mais acredita em fantasma e que vem perdendo a capacidade de se indignar com os gritos roucos de pais e mães de família subjugados e humilhados.

O respeitado colunista e veterano jornalista do Correio Braziliense, Ari Cunha, comentando as trágicas mortes dos fiscais do Ministério do Trabalho na cidade mineira de Unaí, cobrou uma legislação que contemple a situação dos bóias-frias, substituindo o sistema feudal pelo trabalhismo organizado.

Em Minas, como na Amazônia, no Nordeste, outras regiões ou Estados brasileiros, milhares de bóias-frias são deslocados para as fazendas conforme o trabalho que surge. Fica difícil para o produtor ou fazendeiro, muitas vezes com estrutura precária, registrar esse trabalhador pelo espaço de um ou dois dias, ou curtos períodos de tempo. Quem percorre o interior do país sabe do que estou falando.

É preciso que encontremos, aqui no Poder Legislativo, outro meio de controle dos benefícios previdenciários desses trabalhadores. Não vamos resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das muitas e controversas versões de “trabalho escravo”. O medo de ter um nome da família colocado à execração pública já vem levando muitos produtores a mudarem de ramo, deixando para trás uma legião de famílias de desempregados, com o campo sendo entregue aos grandes grupos econômicos de lavoura mecanizada e pouca mão-de-obra.

Precisamos encontrar uma saída para garantir o trabalho no campo. Como um grande incentivador do cooperativismo, acredito que as cooperativas poderiam intermediar a contratação de mão-de-obra nessa área, com adaptações pertinentes à cada região. Urge parar de macaquear e querer copiar procedimentos e regras de países que nada têm a ver com o nosso. Enquanto insistimos neste erro, milhões de desempregados estão, a contragosto, abandonando a zona rural porque ali já não encontram trabalho .

Pequenos produtores e empresários locais do campo já estão preferindo vender suas terras para investir no lucrativo mercado financeiro, na agiotagem institucionalizada, onde não empregam ninguém e não respondem por acusações de trabalho escravo. Mas ajudam a manter, sob o chicote dos juros escorchantes – cujas investidas sangram na carne de um corpo fragilizado – uma população escravizada pela ganância do capital, controlado com mão de ferro pelos Senhores do Mundo e do Dinheiro.

Deputado Severino Cavalcanti
Segundo-Secretário da Câmara dos Deputados”

Fonte: Agência Carta Maior