Pela primeira vez, governo não inclui educação entre os bens comercializáveis na OMC

A reunião que criou a Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada no Uruguai em 1994, também instituiu o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços, GATS, que a partir de então passou a disciplinar regras para o comércio de toda sorte de serviços, sem exceção. O processo se deu na esteira do Consenso de Washington, acordo que materializou o programa da maioria dos países ricos para a gestão do atual estágio do capitalismo, o neoliberalismo. A proposta era que, sob as regras do GATS, os países progressivamente passassem a abrir mão da regulação de serviços do bem estar social até então considerados essenciais na lógica do capitalismo, como educação, saúde, cultura e meio ambiente, em prol da liberalização dos mercados.
Mesmo com episódios como as crises do México em 1994, Brasil em 1998 e Argentina em 2001, conseqüências da aplicação da cartilha do Consenso de Washington, os países ricos, (principalmente Estados Unidos e União Européia) passaram a intensificar na OMC a pressão pela liberalização de serviços que hoje são monopólio do Estado, como é o caso da educação. Mesmo antes da rodada de Doha (iniciada em 2000), que oficializou a educação como um dos itens passíveis de comercialização, o secretariado da organização já havia inserido o tema na lista.
Apesar de não ter havido pedido formal por parte de nenhum Estado Membro da OMC para que o Brasil abrisse o mercado este setor, países exportadores de produtos educacionais como EUA, Reino Unido, Austrália, Itália e Canadá vêm pressionando o Brasil e outros países pela liberalização deste setor. Trata-se de um mercado lucrativo, que movimenta hoje cerca de 30 bilhões de dólares.
Foi para debater a posição do Brasil frente a esta conjuntura que a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados realizou terça-feira audiência que teve a participação do ministro da educação, Tarso Genro, e representantes do Ministério das Relações Exteriores (MRE), da Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) e da União Nacional dos Estudantes (UNE). No encontro, Tarso Genro e o representante do MRE, Ernesto Henrique Fraga, afirmaram pela primeira vez publicamente a posição do Governo Brasileiro de não incluir a educação na lista de serviços a serem ofertados para o GATS.

Educação como bem público

Tarso criticou a possibilidade da entrada da educação em qualquer acordo comercial. Ele declarou que o Brasil considera a educação como um direito e um bem público, “e não uma mercadoria ou serviço comercializável, sujeito às leis do mercado”. “Educação é um patrimônio público fundamental para a consolidação da identidade nacional e fator de base para o desenvolvimento sócio-econômico”, disse. Genro fez referência à Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, adotada pelos estados membros da UNESCO em 1998, e à III reunião das Universidades Públicas Ibero-Americanas, realizada em Porto Alegre em 2002, lembrando que ambos os encontros ratificaram esta posição.
O ministro da educação criticou o processo em curso na OMC, afirmando que a liberalização mundial ameaça “uma série de mecanismos econômicos, institucionais e políticos que antes podiam ser usados pelos Governos para fortalecer o desenvolvimento nacional”. Com isso, segundo Genro, os países ricos buscam enfraquecer nos países em desenvolvimentos os mesmos instrumentos e políticas que por eles foram utilizadas historicamente. “A negociação de setores estratégicos significa renunciar ao direito soberano de regulamentar tais setores, portanto, é crucial evitar que os setores sensíveis como educação, saúde, comunicações e mesmo o setor financeiro sofram danos irreversíveis na capacidade de regulamentação do estado”, defendeu.
Para Tarso, o que está em jogo é o acesso ao nosso “pujante mercado nacional”, cobiçado pelas principais potências mundiais, e o desafio de manter uma competência reguladora do Estado brasileiro. Ele afirmou que o MEC tem sublinhado, dentro das discussões do Governo em relação ao GATS, sua resistência ao tratamento da educação no mesmo patamar de outros bens e serviços comercializáveis. “Na esfera de serviços, é fundamental que o Brasil limite sua disposição de liberalizar o comércio a apenas alguns setores, de forma a preservar a capacidade de regulamentação em áreas estratégicas”, comentou.
O ministro explicou que países grandes, principalmente os que desenvolveram a educação pública nas últimas décadas a partir da ideologia do capitalismo do bem-estar social, hoje dispõem de uma sobra de estrutura material e humana que precisa ser aproveitada. “Na Espanha, houve um crescimento das vagas do sistema público de 40% que hoje está ocioso, eles não podem perder os recursos investidos”, analisou. Para Ernesto Henrique Fraga, do MRE, a decisão do Governo Brasileiro retrata a sensibilidade com as posições manifestadas tanto por órgãos internos do próprio governo quanto por entidades da sociedade civil organizada.
Hoje a educação já está no GATS. Para efeitos do acordo, o setor é classificado em cinco categorias: primário, secundário, superior, ensino para adultos e outros serviços de ensino. Na rodada de Doha foram incluídas a educação superior e de adultos. A liberalização pode se dar em quatro modalidades. Na primeira, estão previstos fornecimento de serviços através de fronteiras, como o envio de produtos (cursos, aulas, materiais) de uma nação a outra, o que pode ser feito hoje por meio da internet sem necessidade de deslocamento tanto de provedores quanto de consumidores. É o caso da educação à distância, que pode ser oficializada como modalidade educacional se aprovado o projeto de reforma do ensino superior do MEC.
Na segunda modalidade de liberalização, o acordo prevê o comércio a partir do translado do consumidor para receber o produto fora do país, a chamada mobilidade acadêmica. Este é hoje o nicho mais importante do mercado mundial em razão da situação já citada de espaço ocioso em instituições de ensino superior de países ricos. Atualmente é grande a quantidade de estudantes que fazem cursos no exterior, mas o reconhecimento dos diplomas e certificados ainda é rigorosa. Na proposta de reforma universitária do governo, as instituições privadas passam também a ter esta prerrogativa, o que deve incentivar a mobilidade acadêmica.
Através da terceira, o GATS permite a instalação de filiais e franquias de escolas estrangeiras dentro do País ou acordos de associação de instituições. Um exemplo seria se uma universidade brasileira fizesse um acordo com Harvard e receberia o “selo Harvard de qualidade”, qualificação que poderia passar a ser vendida por universidades de grande prestígio internacional. Embora a posição do Brasil seja contrária à liberalização total, o anteprojeto da reforma do ensino superior do MEC permite até 30% de presença de investimentos estrangeiros em instituições privadas brasileiras. Para alguns movimentos da área de educação, este limite tende a ser suprimido ou aumentado durante a tramitação da proposta no Congresso. A última modalidade prevê a presença no país de agentes fornecedores do serviço, medida que possibilita a atuação livre de representantes das empresas do país provedor. Um exemplo seria a vinda de professor durante determinado período, a figura do professor visitante, para ministrar cursos e disciplinas que seriam pagos ou pelos alunos ou pela instituição.

Entidades apóiam

A representante da ANDIFES, Ana Lúcia Gazzola, parabenizou a posição brasileira se dizendo “um pouco mais otimista” mas ainda receosa pois a pressão no âmbito mundial ainda continua forte. “Temos de separar internacionalização solidária de globalização predatória”, defendeu. Gazzola apontou para o perigo de uma outra tática. Segundo a professora, há um discurso para que a educação seja reconhecida como bem público GLOBAL, passando a ser regulada pela UNESCO.
Ela informou que uma mobilização operada principalmente dos países em desenvolvimento garantiu a retirada deste item da resolução da conferência Paris + 5, realizada em 2003 pela UNESCO para atualizar as conclusões da Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI. Mas ressaltou que é preciso atenção a esta movimentação para combatê-la duramente. Para Fabiana Costa, vice-presidente da UNE, é importante lembrar nesta discussão que a defesa da educação superior passa por um “novo projeto de país”. “Temos o desafio de resistir às ofensivas que visam mercantilizar a educação redefinir o papel do ensino superior no País”, afirmou.

Oportunidades e riscos

Em seu discurso, Tarso Genro não descartou totalmente o comércio de serviços educacionais. Segundo o ministro, o Brasil deve observar a possibilidade de, por meio de acordos bilaterais, garantir cooperação em que o país possa ter ganhos comerciais com ações como a exportação de serviços e produtos educacionais, abertura de filiais de IES no exterior e o estímulo à ida de professores para ministrar cursos. “É possível que o Brasil descubra importantes oportunidades de negociação caso a caso, em setores de nosso interesse, tendo em vista a possibilidade de aumentar o intercâmbio acadêmico, bem como a recepção e oferta de serviços educacionais no País”, disse.
Para Fátima Mello, da Rede Brasileira de Integração dos Povos (REBRIP), a posição do ministro deve ser tratada com cuidado, pois as razões que levam o Brasil a proteger seus mercados justificam também que não seja exigida a abertura de outros mercados mais frágeis. “O que não queremos que façam com a gente não podemos fazer com os outros”, afirma. Para Mello, há riscos de o Governo sofrer pressões e recuar da posição atual para obter ganhos em outros serviços ou produtos que considera prioritários. Ela avalia que o ambiente de negociação é permeado por ameaças de retaliação e sanções. “A busca pela ampliação dos mercados consumidores para produtos agrícolas dentro da OMC, prioridade do Governo, pode fazer o Brasil negociar alguns serviços estratégicos, como é o caso da educação”, analisa.

Fonte: Agência Carta Maior