Manifesto pressiona Congresso a aprovar Estatuto da Igualdade Racial

Uma audiência pública realizada nesta terça-feira (4) em Brasília constatou que o racismo continua imperando no mercado de trabalho brasileiro. Segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho e da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), os negros têm mais dificuldade de serem admitidos e recebem salários menores, mesmo exercendo funções compatíveis. As maiores disparidades acontecem no setor bancário. “Esse país finge que não é racista, mas já sofri isso na pele quando estava preste a ser promovida, como funcionária da Nossa Caixa. Meu superior chegou a dizer que não colocaria uma mulher negra como gerente para atender seus clientes”, disse Neide Fonseca, diretora executiva da Contraf.
Nesta mesma terça-feira, também na capital federal, os presidentes da Câmara e do Senado receberam de representantes do movimento negro e de outros setores da sociedade civil um manifesto assinado por 425 professores, intelectuais e lideranças de movimentos sociais e mais 157 estudantes. O documento defende a Lei de Cotas (PL 73/1999), que aguarda votação em plenário da Câmara, e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), já aprovado pelo Senado, e cobra sua pronta aprovação. Dois projetos que podem, justamente, combater a discriminação racial – destacada pela audiência pública – ainda negada no Brasil.
O manifesto foi motivado por outro, entregue aos parlamentares na semana passada e assinado por outros 114 intelectuais – alguns deles notoriamente do campo progressista –, que se posiciona contrariamente aos projetos. Intitulado “Manifesto de Alerta: Todos têm direitos iguais na República Democrática”, o documento defende dois argumentos principais: o princípio da igualdade, segundo o qual todos os cidadãos devem ser tratados sem distinção; e o risco que o Estatuto traz ao “implantar uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros”.
“Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela “raça”. A história já condenou dolorosamente estas tentativas”, afirma o texto. Que continua: “ transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de todos perante a lei … Políticas dirigidas a grupos “raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica”, diz o documento assinado por nomes como o do cientista político Renato Lessa, de Caetano Veloso, do antropólogo Peter Fry e pela ex-secretária de Política Educacional do Ministério da Educação no governo FHC, Eunice Durham.

A reação foi imediata. Quatro dias depois, dois manifestos em favor das cotas recolhiam assinaturas. Um deles – que contou com o apoio do dramaturgo Augusto Boal, do jurista Fábio Konder Comparato, do sociólogo Emir Sader, do antropólogo Kabengele Munanga e do professor Pablo Gentili, além de outros nomes, como o de diversos propositores de cotas em universidades que já adotaram as cotas – foi entregue ao Congresso nesta terça.
“Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid, os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que a dos brancos no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era muito maior que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades públicas nos dias de hoje. A porcentagem média de docentes nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os negros conformam 45,6 % do total da população”, diz o segundo manifesto.
“Se os Deputados e Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois, segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial na educação seja adotada”, afirma.
Na opinião de Frei David, diretor executivo da Educafro, rede de 255 pré-vestibulares comunitários para afrodescendentes e carentes e uma das principais articuladoras do manifesto, “talvez os autores do primeiro texto estejam mal acostumados com um Brasil que herdou uma visão colonialista”. “No Brasil de hoje, o negro não vive mais uma relação colonialista e tem um processo de autonomia, tem sua autodeterminação, e não vai abrir mão disso”, garante. “Até dezembro de 2005, tínhamos no Brasil 1.380 universidades e instituições particulares de ensino superior adotando cotas através do Pro Uni. Nenhum intelectual protestou contra a presença do negro nas universidades particulares via cotas. Mas assim que o negro decide lutar por cotas na universidade pública os intelectuais gritam, porque agora vão ter que dividir este privilégio com os negros e os pobres”, acredita Frei David.
Segundo a Educafro, uma pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou que a diferença de mobilidade social no Brasil permanece estável desde 1929, apesar de todas as políticas universalistas adotadas. “Somos radicalmente a favor das políticas universalistas, mas que também se adote políticas específicas. Todos os marxistas já superaram a visão de que tudo vai se resolver com a questão das cotas sociais; já entenderam que a questão racial é fundamental de ser levada em conta para superar as desigualdades”, avalia.
Rosana Heringer, coordenadora do Programa de Relações Raciais da ActionAid Brasil, que integra a coordenação da campanha “Onde você guarda o seu racismo” e, desde 2004, desenvolve parcerias com ONGs de comunidade quilombolas e trabalhos com mulheres negras, concorda. Para ela, o que está em disputa é uma visão de país e de que tipo de estratégias queremos construir para chegarmos à igualdade.
“O manifesto contrário às cotas diz que a igualdade vai ser construída a partir de políticas universais e que, ao longo do tempo, este ideal republicano vai atingir este objetivo. O problema é que essa interpretação não leva em conta como esses ideais se realizam na prática. Temos uma situação de desigualdade real que não está sendo resolvida ao longo do último século. É um olhar histórico que não considera que, deste que abolimos o trabalho escravo, não houve preocupação em incluir a população negra. São interpretações divergentes sobre o que aconteceu no Brasil, em que o ideal igualitário sempre esteve presente e não se realizou na prática. Basta ver o quanto ainda falta pra se concretizar”, aponta Rosana.
Outro ponto do manifesto de oposição ao Estatuto da Igualdade Racial e das cotas é a idéia de que, ao se utilizar o critério racial para políticas públicas, você acaba “racializando” o Brasil. “Mas isso é uma questão divergente. É uma percepção de que, se você não fala de raça, o racismo não existe, o que não se sustenta, porque a gente pode ter passado o século XX todo dizendo que o Brasil é uma democracia racial e isso não impediu que situações de preconceito cotidiano permaneçam. Entendo a preocupação desses intelectuais, em como discutir raça e racismo sem racializar o país, mas racializado o Brasil já é”, acredita.

POLÊMICA NA IMPRENSA

A grande mídia aproveitou bem o “ganho” dos manifestos para deixar clara sua posição acerca da política de cotas no país. Em editorial publicado nesta quarta-feira, a Folha de S.Paulo afirma que, ao tornar obrigatória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior, a Lei de Cotas é uma ameaça à educação universitária. “O mérito acadêmico perde espaço, e a duplicidade de critérios estimula o recrudescimento do racismo nos bancos escolares. A prioridade do governo federal deve ser o investimento em educação fundamental e média pública, gratuita e de qualidade. O desafio a enfrentar é longo e custoso, mas sem dúvida mais efetivo do que tomar atalhos demagógicos. O Estatuto da Igualdade Racial mira mais longe, e as distorções que pode causar são ainda mais temíveis. O texto prevê uma classificação racial oficial dos cidadãos, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios para empresas privadas que usem cotas raciais para contratar funcionários”, diz o editorial.
Para a família Frias, “é um evidente retrocesso que se passe a definir direitos com base na tonalidade de pele dos cidadãos. A perspectiva é trágica e remete mais à famigerada política de segregação consubstanciada no Apartheid da velha África do Sul do que às motivações democráticas supostamente embutidas nos projetos”.
O grupo Globo foi além. Na semana passada, no bojo da entrega do manifesto dos intelectuais contrários às cotas, escreveu:

“Com a desenvoltura que certos grupos organizados passaram a ter no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a questão das ações afirmativas no ensino, particularmente das cotas raciais, ganhou um vulto desmesurado. (…) Com militantes bem posicionados na máquina do Estado, esses grupos conseguiram apressar no Congresso a tramitação de um projeto de lei que institui as cotas no ensino superior e ainda encaminharam o Estatuto da Igualdade Racial, lei que perigosamente cria na sociedade brasileira o conceito de “raça” para definir direitos. Aprovado, aproximará o Brasil de funestas experiências vividas na Europa na primeira metade do século XX. A carta aberta contra esses projetos de lei entregue quinta-feira ao Congresso, assinada por intelectuais, artistas e também por representantes do movimento negro, cumpre um papel salutar em toda essa discussão. (…) As cotas e o tal estatuto da pretensa igualdade devem ser rejeitados com a mesma veemência e energia com que se tem de defender a melhoria radical da qualidade do ensino básico para toda a população, independentemente de cor da pele.”
Na página do Jornal Nacional na internet, que disponibiliza os vídeos das reportagens que foram ao ar, a emissora cortou os vinte segundos da entrevista com o Frei David, que se opunha ao primeiro manifesto, mantendo apenas os quatro e longos minutos dedicados às posições contrárias à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial. Somente depois de uma forte pressão da Educafro, os 20 segundos voltaram ao ar. Apesar disso, as entidades que defendem as cotas consideram que saíram ganhando com a polêmica de volta ao debate público.
“A intenção dos intelectuais contra as cotas era parar o processo da vitória do povo. E para o azar deles, a comunidade negra se sentiu indignada com o manifesto e ampliou sua decisão de lutar em prol dos seus direitos. O manifesto acabou rendendo positivamente”, avalia Frei David.
“O mais importante é que o debate esteja acontecendo, porque sempre o discurso é o da negação, de não admitir que há preconceito no Brasil e que essas políticas específicas não se aplicam. Agora o debate esteja ganhando fôlego”, acredita a representante da ActionAid Brasil.
Para Sebastião Arcanjo, deputado estadual pelo PT de São Paulo e Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Igualdade Racial na Assembléia Legislativa do Estado, o Brasil não pode mais fugir deste debate.
“Tem aqueles que querem colocar esta questão debaixo do tapete. Mas o Brasil tem uma dívida, que chamamos de reparação, e isso precisa ser assumido. O país também tem compromisso com as resoluções da Conferência de Durban. Se recuperarmos os programas de governo dos últimos candidatos à Presidência, veremos que Serra e Lula defenderam a questão das cotas. E, do ponto de vista interno, no movimento negro, do ponto de vista democrático, construiu-se uma ampla maioria em favor das cotas, reconhecendo que as políticas de caráter universal não resolveram o problema de discriminação no país. Então, até quando teremos dois “Brasis”, com cidadãos de primeira e segunda classe, de acordo com a cor da pele? Até quando vamos esconder o debate e fazer a política da avestruz?”, questiona Tiãozinho.
Se aprovado na Câmara, o projeto da Lei de Cotas será submetido ao Senado. Após a sanção presidencial, valerá para o vestibular seguinte. Já o projeto que cria o Estatuto da Igualdade Racial já foi aprovado pelo Senado, mas ainda segue na fase de análise pelas comissões da Câmara. Renan Calheiros, presidente do Senado, e Aldo Rebelo, presidente da Câmara, garantiram nesta terça aos defensores das cotas que ambos os projetos serão tratados com prioridade nas duas Casas e devem ser aprovados antes do final do ano.

Fonte: Agência Carta Maior