Direito à alimentação vira lei; desafio agora está na implantação

O processo de efetivação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar (Losan)envolveu partidos políticos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, conselhos nacional e estaduais da área e governos de diferentes níveis.
O esforço combinado do governo com a sociedade civil resultou na elevação da alimentação à condição de direito e à política de Estado com a aprovação da Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (Losan). A sanção da nova lei marca a conclusão de um processo de quase quatro anos, que inicialmente ganhou destaque com o Programa Fome Zero, no início de 2003, passou por transformações – com a incorporação da pasta criada para a área (o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Comate à Fome) no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e, principalmente, com a consolidação do Programa Bolsa Família.
A proposta teve processos de construção e aprovação participativos, pois nasceu como iniciativa do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e teve na definição de seu texto final uma costura que envolveu partidos políticos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, conselhos nacional e estaduais da área e governos. “Graças a essa convergência da vontade nacional, a nutrição e o combate à fome assumem hoje o caráter de uma política perene no Brasil, evitando-se, assim, a descontinuidade administrativa numa área de crucial interesse de toda a sociedade”, comemorou o presidente Lula na cerimônia de sanção da Lei realizada na última sexta-feira (15), em Brasília.
A Losan estabelece como obrigação do Estado brasileiro a garantia, proteção, fiscalização e avaliação da realização do direito humano à alimentação por meio de políticas de promoção da segurança alimentar e nutricional. A norma assim define este novo compromisso assumido pelo Estado nacional: “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.
“A Constituição de 1988, que estabelece no seu artigo 6º os direitos sociais fundamentais do cidadão, não previu ali a alimentação como um direito explicitado. Portanto hoje, temos a oportunidade, com a sanção desta lei, de trazer para o plano dos direitos a questão da alimentação, como responsabilidade do Estado e que deva ser efetivamente estendida aos cidadãos brasileiros”, destacou Onaur Ruano, secretário nacional de segurança alimentar do MDS.
Para isso, cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que será formado por conselhos e conferências nacional e estaduais. No âmbito do governo federal, a área deixa de ser responsabilidade específica do MDS e passará a ser gerida por uma câmara interministerial sob coordenação da Casa Civil. A expectativa é que pelo menos 17 órgãos hoje presentes no Consea componham esta nova estrutura. Outra característica elogiada pelos presentes foi a forte incorporação da participação no Sistema, cujo exemplo mais explícito é a presença de dois terços da sociedade civil nos conselhos nacional e estaduais.
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente do Consea, Francisco Menezes, citou como exemplo da importância desta mudança as dificuldades por que passou o conselho, fechado durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso. “Isso não poderá mais acontecer: agora o Consea tem a sustentabilidade, a proteção da lei. Isso é um grande avanço”. Com a reunião das políticas para a área estruturadas em sistema nacional, pretende-se uma melhor articulação entre as diversas ações de promoção do direito à alimentação em todos os planos da Federação. “A Lei (Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional) cria espaços institucionais permanentes para que os diferentes programas voltados à segurança alimentar possam ser cada vez mais integrados e, com isso, ganhem ainda mais eficiência”, afirmou o presidente Lula.

Primeiro passo

Na avaliação do relator nacional para o direito à alimentação, terra rural e água, Flávio Valente, a sanção da Lei Orgânica é uma iniciativa pioneira na incorporação de tratados internacionais de direitos humanos à legislação nacional. A Losan é uma tradução para o marco normativo nacional dos artigos referentes ao direito humano à alimentação presentes no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), ratificado pelo Brasil em 1992. “Não é vitória só para o direito humano a alimentação. Ela (a Losan) cria instrumento forte para trazer outros direitos econômicos sociais e culturais que estão dentro do pacto e traz numa peça todos os elementos da legislação internacional de direitos humanos, principalmente os mecanismos de exigibilidade”, diz Valente.
“Mecanismos de exigibilidade” são instrumentos pelos quais as pessoas podem reclamar a violação e não respeito de seus direitos. Algo que já foi desenvolvido em outras áreas como no caso do Procon – que acolhe infrações ao direito do consumidor -, mas se apresenta como uma realidade distante para a população no plano dos direitos fundamentais. A expectativa de organizações da sociedade civil é que estes instrumentos fortaleçam as condições de pressão junto ao Estado para que as diversas políticas no escopo da promoção do direito humano à alimentação sejam ampliadas ou mesmo protegidas de problemas como o contingenciamento de recursos. Reivindicações como essas já são frequentes, principalmente no Consea, mas só agora ganham uma base legal para se apoiarem.
O passo seguinte agora é a disputa pela regulamentação e implantação da Losan. A coordenadora nacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns, defendeu um movimento suprapartidário e amplo para colocar a nova lei em prática. “Os gestores devem ter certeza de que o combate à fome não depende do governo federal, do Estado, do município. Depende de todos os setores e é suprapartidário. É uma política que não pode servir de mola eleitoral, mas que a gente veja que todas as nossas crianças, gestantes e o povo pobre possam ter comida na mesa”, colocou.
“O Brasil tem quantidade enorme de Leis, e elas não são cumpridas, na maioria das vezes, no sentido de garantir direitos das pessoas”, diz o relator nacional. Ele cita como exemplo o dispositivo constitucional que condiciona a uma propriedade privada o cumprimento de sua função social, elemento alegado pelos movimentos de luta pela Reforma Agrária, mas pouco presente nas decisões do Poder Judiciário.
A regulamentação será um dos momentos importantes, pois os próprios “mecanismos de exigibilidade” ainda não estão previstos na norma, mas apenas a necessidade de sua criação. Por isso, as próximas batalhas devem se concentrar no Executivo Federal, para instalação da Câmara e criação dos instrumentos de exigibilidade junto aos programas já desenvolidos e aos Executivos Estaduais e Municipais, para que incorporem de fato o Sistema Nacional. Em seguida, a perspectiva é de duras batalhas com o Judiciário na exigência do cumprimento da Losan.
Um outro exemplo de curto prazo das tensões que a Losan poderá trazer recai curiosamente sobre o próprio Bolsa Família. Segundo Valente, caso seja de fato assumida a alimentação como direito humano, as condicionalidades do programa não podem continuar. ?Para você ter condição de se alimentar precisa ter renda. E para isso você não pode obrigar esta pessoa a levar as crianças para um posto de saúde e uma escola que não necessariamente existe em sua comunidade como condição de receber estes recursos?, explica o relator, dando uma idéia concreta dos efeitos diretos desta nova obrigação assumida pelo Estado brasileiro.

Fonte: Sitraemg (Agência Carta Maior, com informações da Agência Brasil)